quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Sobre mundos

Sou a fumaça do meu cigarro, e fui engolida por mim mesma. Tossi, tossi e tossi. Mas a garganta ainda arranha. Estou dentro de mim de muitas maneiras possíveis. Não sou apenas a fumaça, também sou a comida, as roupas, e principalmente minhas palavras. Não necessariamente as faladas, porque as ideias ecoam. No auge do breu da madrugada, em um mundo de frases, textos, narrativas e poesias, existem palavras ecoando. É um mundo infinito, porque são incontáveis as palavras desse mundo, a cada parte se falam palavras diferentes, mas as que marcam, ecoam nesse mundo. E aí se pode visualizar o mundo: se resume a um quarto, ao lado do quarto dos pensamentos e das ideias. Por uma porta, ou qualquer fresta que se abra, as palavras ecoam e filosofam no outro quarto. E continuam a ecoar, a existir com sentido maior, com significância. Em frente a esse quarto, está o mundo dos sentimentos. Este já é mais peculiar. É como uma visão de ver o mundo, mas materializado é apenas a natureza. O mundo dos sentimentos exteriorizado são como membranas que nos envolve, e se sente, porque se é uma visão, se vê - se vê com o coração. Coexiste com o mundo das sensações, e esse é o mundo mais aventureiro, porque, como as palavras, existem incontáveis sensações no mundo. Existem incontáveis pessoas do mundo. Logo existem inimagináveis mundos no mundo. Mundos e mundos dentro de uma mente, um universo inteiro de mundos dentro de uma singular pessoa. O que vem de mim é um mundo completamente diferente de qualquer outro, como a minha fumaça, por exemplo. É parte dos ares que respiro, e sai de mim um mundo distinto de ares expelidos.
Uma pessoa com um humor possui um universo de mundos, então cada pessoa tem cada universo de acordo com cada humor, e humores, durante a vida, se diferenciam. O momento é outro, as circunstâncias. Humores são únicos, a cada momento, tudo é único. Uma ideia é única, o que se repete são os lugares comuns da vida. Assim, cada pessoa tem infinitos universos. E as interações entre gente, bichos, natureza, momentos e infindáveis coisas são trocas incríveis de energias que regem os nossos universos. Com tantos universos em um mesmo mundo, algo há de existir entre tantas presenças que faça, além das leis da física, o mundo girar. Ou existir. E existe: são energias que manifestamos e recebemos, são as leis da gravidade e do eletromagnetismo. Energias próprias e alheias, em contínua função.
O que torna o mundo em que todos compartilhamos o "perpétuo assombro" é a singularidade de cada quarto, cada mundo, cada universo, cada complexo de universo, cada interação. A incrível capacidade de se maravilhar.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Atrito

Se somos energia, estamos em atrito todo o tempo, então, se imagina isso visível, me verá me apaixonando, mas se realmente o ver, verá que dentre paixões, tenho um amor.

Machado de Assis

O espelho

"Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual eeterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira."


Do livro: Papéis avulsos