domingo, 30 de dezembro de 2012

Sofia e a insônia - 2

Pereço sem meus vícios. Ou fortaleço?

Sonho

É o pensamento duplicado. Acordada eu tenho uma crença, adormecida é outra. Eu sonho. Sonho com perseguição, com magia, com incredulidade, com impossibilidades. A garota me seguia, dormia nos cantos, perto de mim. Onde quer que eu estivesse, ela estava ao lado, adormecida como eu estava na hora, porém sem saber. E eu ia atrás, e ela se zangava. Eu ia atrás, e ela me amava ao contrário. Depois, tínhamos nossa vida. Nossa vida ao Sol. Como é capaz um coração trair a si mesmo?

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Sêneca

Por isso, enquanto meus olhares não se afastarem do espetáculo que nunca os farta; enquanto me for permitido olhar o Sol e a Lua, fixar os outros planetas, deles observar o nascimento e o ocaso e as distâncias, e indagar as causas que tornam seu curso mais veloz e mais lento, contemplar durante a noite tantas estrelas brilhantes, uma imóvel, outra que se move em curto espaço mas sempre sobre seu caminho, e algumas que aparecem de repente, algumas que espiram centelhas, como se caíssem voando um grande espaço; enquanto estiver com todas essas coisas e me confundir, tanto quanto é permitido ao homem, com as coisas celestes; enquanto tiver sempre alta a alma, inclinada por sua natureza à contemplação dos astros a ela semelhantes - que importa que solo eu pise?


Do livro: Consolação a minha mãe Hélvia (Ad Helviam matrem de consolatione)

Anderson Aníbal - 2

Peixe vivo

Meu coração é um paralelepípedo de sessenta e quatro quilos. Meu coração é um limão carnudo e cheio de suco. Meu coração é uma flecha. Meu coração é um poço. Sem água nenhuma. Meu coração é uma terra batida, rachada, desacreditada por qualquer lavrador. Meu coração tem sede. Meu coração é um desabrigado. Meu coração é um remédio muito forte, para dormir. Meu coração é um veneno. Meu coração é um cachorro que arde em feridas. E late rouco. Meu coração é roxo. Meu coração é um soco no olho. Meu coração é um dente de siso que não conseguiu nascer. Gosto de sangue. Beijo na adversidade. Meu coração é um covarde no meio da tempestade de gelo. Meu coração é um raio no meio da praia deserta. Meu coração é um apêndice. Uma fratura exposta. Meu coração é um toca-fitas roubado. Fio desencapado. Dedo enrugado. Ferrugem, maresia, hemorragia. Meu coração é um acidente nuclear. Um atropelamento. Um escorregão. Meu coração é um terrorista amarrado à sua bomba. Manteiga rançosa, fel de galinha. Almeirão amargoso. Meu coração tem azia. Meu coração é sem limites. Casa vazia. Papel de parede. Provisório. Meu coração tem listras verticais. Meu coração é marcado. Meu coração é um homem bruto, com muita força na mão. Aperta demais as torneiras. E os potes. Compotas de doce. Aflição. Meu coração é uma foice. Gelado, gelado, gelado. Um cubo. Meu coração é um afinador de instrumentos musicais. Meu coração é uma navalha. Lâmina de aço. Toco de cigarro. É uma cobra, um rato. Anda pelos cantos. Meu coração trai. Diz que nunca mais. E volta. E mente. É doce, cara limpa. Espinhoso. Meu coração é triste. E dorme pouco. Eu não tenho solução para o meu coração. Eu não tenho como me livrar dele, como arrancá-lo. Eu corro e fujo e danço e me jogo sobre os carros. Eu me lanço aos beijos e abraços. Eu me deito, eu me levanto. Eu bebo um pouco mais de vinho. E como, como, como. Eu saio dizendo o que não devo. Eu me arrependo. E me açoito. Eu me desculpo. E me compreendo: meu coração é um peixe vivo, saltando, querendo encontrar o mar.


Do livro: Alguns leões falam

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sofia e a insônia

Sofia não gostava de tomar banho. Também não lhe apetecia estar suja. A gota de suor que descia da testa percorria seu rosto, grudava em seu pescoço, e lhe dava a sensação de umidade. Uma umidade desagradável, suja. Esta é a palavra que Sofia não gostava quando lhe era referido a seu corpo: sujo. Porém, o indesejado é o ritual para o banho. Tirar a roupa e se deparar com seu corpo. Sujo. Suado. Sofia sabia o que esses fatores causavam. E, religiosamente, tinha que seguir seu próprio ritual. Mecanicamente. Inconscientemente. Fervorosamente. Compulsivamente. Os dentes se apertavam, sentia a tensão, a força. Prestes a quebrar um dente caso se perdesse a razão - desmaio. A pele, úmida, escorregadia, deixava seus vestígios embaixo das unhas de Sofia, agora pretas nas pontas. Observava as mãos, os dedos, as unhas, o canto das unhas. Era tudo tão desorganizado e feio, e sujo, como todo seu corpo, todo seu quarto, toda iluminação que lhe permitia enxergar bem sua pele, toda sua mente, e toda sua vida. Em vão tentava limpar as unhas, porque recomeçava o ritual em outro canto do corpo. Se seu objetivo, um dia, fora arrancar a pele fora de tanto desgastá-la, não estava tão longe assim do objetivo. Por ora contentava-se, Sofia, de marcá-la. Um dia depois era vermelhidão. No segundo após, uma casca. No terceiro, a casca estava quase saindo. No quarto, conseguia arrancá-la. No seguinte, tudo novamente. Até completar o corpo inteiro. Sofia sabia gozar pelo corpo inteiro. Assim como sabia destruí-lo por inteiro. Numa dessas, Sofia desconfiava ser autodestrutiva. Se boicotava para lamentar o próprio boicote. Para se punir por ter se boicotado. Para se refugiar, também, dos boicotes externos. Dos seus boicotes a outras pessoas. Mas, apenas desconfiava, enquanto, após o banho, algumas horas depois de ter começado a tirar a roupa, estava sentada em sua cama, ainda nua, ainda úmida, mas desta vez limpa, arrancando feito um animal selvagem a pele do canto de sua unha, com os dentes, até sentir arder a carne viva em contato com o ar, e o sangue se espalhar pela fina cutícula.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Vermelho

Meus versos livres são prosa,
e prosa é meu corpo.

Meu corpo é vermelho,
é poesia corrente.
É preto,
é verso em desuso.
Azul,
sinestesia.

Meu corpo é vermelho,
são versos de amor.

Minha prosa é vermelha,
é Vênus em ânima.

É Vênus em êxtase.

Meu escrito:
bucólico,
melancólico.
Por fim,
bélico.




sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ninfa

Sobre a menina que mal entrou na minha vida e já está de saída. Veramente, ela nunca sairá. Mas creio que ela sabe disso.
Quando eu lhe disse que havia marcado um tom em mim, um ritmo simples, metáforas sonoras, como mariposa de sueño, te pareces a mi alma, y te pareces a la palabra melancolía, ela anunciou sua ausencia; y mi oyes desde lejos, y mi voz te alcanza.
Eu a conheci quando não quis coexistir a vida. Seu brilho áureo me cegou. E cega, eu, ela me ajudou. Me guiou, e seu brilho se tornou um amarelo alegre. Como o fogo.
Como o fogo, nosso relacionamento teve a exata duração de um cigarro. E de outras coisas. Não de um beijo demorado, apaixonado não; eufórico e exaltante; triste; y te pareces a la palabra melacolía; prisioneiro de uma cela dos elos sociais.
Foi uma menina que, se eu não a tivesse conhecido pelo adverso acaso, seria de palavras. De amizades confundidas e ocasionais. Quanta coincidência! Conhecê-la foi a melhor das coincidências.
Ela é melancólica, assim como eu. Uma literata, musa inspiradora. A ânima que me faltava.
Eloquência de menos, nos definiu.
Ela é atemporal, sem cronologia. É diacrônica. Seu tempo é o tempo do mundo e o tempo do mundo é o silêncio. Em seu nascimento, quis nomear as coisas do mundo e assim o fez. Criou uma história para cada coisa, para cada um, e até seu brinco dourado ganhou um conto que começou na vontade e terminou, dourado, em meus lábios. Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo. 
Aqui é o limite do meu conhecimento, da menina que me lembrava o Sol.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Francisco de Quevedo

Definiendo el amor

Es hielo abrasador, es fuego helado,

es herida, que duele y no se siente,
es un soñado bien, un mal presente,
es un breve descanso muy cansado.

Es un descuido, que nos da cuidado,
un cobarde, con nombre de valiente,
un andar solitario entre la gente,
un amar solamente ser amado.

Es una libertad encarcelada,
que dura hasta el postrero paroxismo,
enfermedad que crece si es curada.

Éste es el niño Amor, éste es tu abismo:
mirad cuál amistad tendrá con nada,
el que en todo es contrario de sí mismo.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Demônios

Tenho medo constante. Como se estivesse sendo seguida, observada. Possuída. No escuro, não me basta acender uma vela e os demônios se esconderão. Me esperaram na porta do meu quarto, para onde vou correndo toda vez que escurece. É o meu refúgio. Onde meus santos estão livres do meu corpo e a alma pode tornar-se ânima. Meus deuses poetas estão libertos, mas o apelo às musas inspiradoras não os tem animado muito. São tantos os demônios na porta do meu quarto que a comunicação espiritual resulta ínfima. Da informação, eles colhem o que há de mais vivo, e o tártaro o deixam lá. Lá no Tártaro. É onde estão meus ânimos.
Sinto que os demônios conseguiram invadir meu bucólico campo, e não há mais ninfas que os queimem. Onde me esconder, onde me refugiar, se o bucólico já não o é mais. É urbano. Foi invadido. Nem em cantos amebeus sou capaz de desafiar os meus demônios. Nem em versos livres. Perdi meu argumento, minha oração, minha palavra. Agora sou gestos.
Muda, meus demônios não me acharão. E se me virem andando pelos clarões da cidade, eu, sem voz, não me possuirão. Dentro de mim, é onde me resta ânima.

domingo, 28 de outubro de 2012

Gustavo Adolfo Bécquer 2

Rima XXIII

Por una mirada, un mundo ;
por una sonrisa, un cielo ;
por un beso... yo no sé
que te diera por un beso.



Do livro: Rimas

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Nostalgia

Recordar a nostalgia são releituras das lembranças de anos ou de ontem. Nostalgia é um sentimento só, assim como o ser é um só e a percepção é uma só. Não existe comparação sem o elemento comparativo, assim como não existe a comparação de elementos não diacrônicos. A questão é a sincronia de momentos que torna uma comparação em metáfora. A questão da nostalgia é a sutileza de retomar sentenças antigas e fazê-las clássicas. O amor de outrora não é mais o de hoje. A cumplicidade de outro ano não é mais cúmplice de uma amizade. É a sutileza de fazer uma anáfora seguir sendo simples e intensa. A simplicidade de fazer uma aliteração implícita. É o silêncio do externo que ecoa feito consoantes numa cabeça veloz.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Aldous Huxley

A verdade é a libertação; mas, por outro lado, não é prudente acordar o cão que dorme e muito menos provocar o que não dorme.Convém ter em mente que as guerras mais implacáveis não são as que se travam em torno das coisas; e sim as que se travam em torno das tolices que os idealistas eloquentes disseram sobre as coisas - em outras palavras, as guerras religiosas. O que é uma limonada? Algo que se fabrica com limões. E o que é uma cruzada? Algo que se fabrica com cruzes - um processo de violência gratuita originada numa obsessão por símbolos mal definidos. "Que ledes, meu senhor?" "Palavras, palavras, palavras". E o que faz uma palavra? Resposta: cadáveres, milhões de cadáveres. E a moral disto é: não abra o bico; ou, se não puder deixar de abri-lo, nunca leve muito a sério o que venha a sair dele.

Katy mantinha os nossos bicos firmemente trancados. Possuía a sabedoria instintiva que faz tabu dos insultos éticos (e a fortiori das algaravias científicas), enquanto tacitamente aceita como fatos consumados os atos diurnos e noturnos a que eles se referem. Em silêncio, um ato é um ato é um ato. Verbalizado e discutido, ele se transforma num problema moral, mum casus belii, numa fonte de neuroses.




Do livro: O Gênio e a Deusa

terça-feira, 17 de julho de 2012

Genius

Estou no meu refúgio, o refúgio das obsessões. A beleza é dispensável quando se é capaz de sentir por debaixo da pele. Com minhas obsessões, estou chegando lá: debaixo da pele. Neste lugar, sou espaçosa, meu corpo são meus pensamentos, e cada reflexão é um pico de prazer. Não sou organizada, mas sou calma, porém ansiosa - por fora.
Como é possível se entediar consigo mesmo, se uma pessoa é genial em seus ossos. A questão está na pele, nem toda pessoa é genial na pele. Na pele, eu sou a linha tênue entre minha vaidade e minha genialidade.

domingo, 13 de maio de 2012

Crime

Cometi um crime horrível. Me rendi ao Amor, o louco e ganancioso. Não sei onde esconder meus sonhos e meus Sonhos. Fui testemunha de um crime terrível, e agora não sei o que fazer com a minha mente. Onde ela está?
Tentei buscar minha razão no beco onde meu amor foi sequestrado - escuro, sujo, vazio. Só se ouve o eco da minha voz. O eco do meu sentimento; o eco do dia em que o Amor me raptou.
Esse crime me consome. Não sei como durmo todos as noites. Durmo mal, mas durmo. O Amor me envolveu, me conquistou com todo seu charme e me fez descobrir o amor. Um homem me fez mulher, e uma mulher não é mais uma menina. O Amor me tirou o que me restava de puro, e me contaminou com seu veneno - chamam, pelas ruas, de tesão. Me deu uma arma, e me disse: "ou ele ou eu; ou ela ou eu". E das atitudes fiz a arma, e das lágrimas, o sangue do assassinado. Matei o Sonho. Matei dois sonhos. Feri o Amor dos meus sonhos, o amor do Sonho.
E agora vivo assim, covarde de amar além do Amor. Estou a ponto de me entregar ao meu sequestrador, de lhe contar aonde pode estar o meu coração, pelas ruas da cidade; e quiçá um dia eu queira sair dessa.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Fumaça

O calor, o coração pulsante e a mão trêmula. Seria paixão? A respiração árdua que pesa sobre ombros, olhos e dedos. Já não sei em qual letra concentrar a tinta. Mas seria? A paixão, que me deixou devagar assim, difícil de falar, de mover?
Ou seria a paixão a fumaça? Está lá, acendendo; a chama, vem o impulso, o surto, um surto mais forte, enfraquecendo, se extinguindo... E a fumaça é plena, agora? Seria a paixão desse jeito?
E...? Passou? Apagou?

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Perdição

Perdi a palavra no meu quarto. Perdi as letras nas cinzas do meu cigarro. Perdi o trecho nas escadarias do meu prédio. Perdi o livro na minha caminhada matinal. Perdi o título no meu sono. Perdi a dedicatória no meu anel.

Perdi a história na noite da minha saudade.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Camões

III

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num'hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um'hora.

Se me pergunta alguém por que assim ando
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha senhora.


Do livro: Sonetos para amar o amor

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Rebelião

Eu me rebelo, me rebelo, sim. Criei uma rebelião: contra a beleza. É bélica, é bela, é guerra.
É uma revolução. Vou mudar os meus sentimentos, que já não suportam mais a própria existência. Desgaste define. Agora a rebelião é outra: contra o amor. Contra as letras, e ao meu coração, destroçado por palavras de vão significado, que outrora eram de ouro. Como Midas, o Rei Midas. Eram ouro. As palavras proferidas e arranhadas eram de ouro, mas apenas para a beleza que os olhos percebem de um brilho intenso e comum. Simples. Sem fundamento, sem teoria, ocas. Palavras ocas, que se ouve o eco de longe. Nem o surto da minha voz atravessa esse silêncio. Palavras e imagem, imaginação e real. Nem o surto da minha expressão atravessa esse silêncio (ou sentimentos alheios).

Qualquer baque que eu levar não vai ser suficiente para me fazer desistir dessa rebelião.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Vida clássica

Juntarei moedas de cinco centavos, de semana em semana - para ter tempo de lhe esperar -, em um pote bem grande de cozinha. Comprarei uma vitrola e alguns clássicos do rock, para ser mais agressiva.
Enquanto isso, eu vivo a paz, com meus discos de música clássica e meus cigarros fortes. De um em um centavo, de ano em ano, farei cópias das minhas chaves. Quando lhe entregar, que as tenha por definitivo, e que me entenda como uma pessoa séria. Jogarei fora o que possuo de clássicas para cultivar um amor moderno.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Bellitiae (Sobre a beleza)

É tudo sobre o que se sente. Se for para pensar, acenda um cigarro. Espaireça a mente.
Em pleno céu negro e constante, quatro horas são marcadas no relógio, e assim como não há pessoas na rua, não existem estrelas acima da minha cabeça. Também não se vendem cigarros. Preciso de algo que me mantenha aberta para pensar.

E se for tudo sobre o que a pele sente?
... Tenho certos costumes provindos do nervosismo do devanear em excesso. A beleza da pele está no sangue, na vermelhidão ardente, nas marcas da leviana violência. Unhas são garras, alvos, o corpo. Marcas são cicatrizes, e cicatrizes são lembranças.

Acredito que tudo seja sobre a beleza.
Aquela que eu, somente eu, vejo.